Segunda-feira, 9 de Junho de 2014

Crônica da Urda.

 

 

MARIA
           
(Para Maria de Lourdes Quintana de Azambuja, minha amiga)
                                   Ah! Maria, quantas saudades! Logo deve fazer seis anos que te foste com a leveza das pessoas realmente livres, aquelas que só precisam de um raiozinho de sol e de uma gotinha de orvalho para viver, e te foste como alguém que se senta no seu raiozinho de luz como uma criança que se senta no balanço de um parquinho – com um impulso dos teus pés de menina, te embalançaste num segundo deste lado para o outro lado da vida, deixando a cada um de nós na maior perplexidade, pois nenhum de nós sabia que podia ser tão fácil partir!
                                   Tu te foste diretamente do teu balanço de luz para a nuvem mais alta e mais bonita, a navegar pelo espaço, e nós que ficamos e que não éramos tão livres quanto tu, quedamo-nos boquiabertos com a tua facilidade e leveza, pois sabíamos que eras uma pessoa livre, mas não sabíamos quanto.
                                   Penso em ti, Maria, como o ser humano mais livre que já tive a oportunidade de conhecer – tua sede de justiça também era uma coisa impressionante, e a garra com que defendias o que achavas que era justo também até hoje me impressiona, se bem que tenho convivido, ao longo da vida, com outras pessoas com tal sede de justiça. E eras amiga, como eras! Lembro-me, agora, de coisas tão corriqueiras e tão grandes ao mesmo tempo! Uma delas é da tua manta de lã cor de vinho, tecida por tua mãe, coisa tão linda, que eu ambicionei tanto quando vi! Não houve nenhum titubeio da tua parte: se eu gostara tanto daquela manta, ela era minha – e me envolveste nela como quem sabe que vai partir logo e quer deixar para ti um pequeno elo material. Encanto-me a cada vez que vejo aquela manta, que te traz para tão perto de mim quando nela me envolvo!                                   Lembro-me como tu filosofavas com propriedade sobre a pequena quantidade de coisas que realmente necessitávamos para viver – e de como eu me encantava quando dizias:
                                   - Roupas? Cada um de nós tem um armário cheio; não precisamos de mais do que temos – e então eu refletia sobre como tinhas razão.
                                   Poderias ter morado num castelo cheio de ameias, mas nada precisavas além de um quartinho, e do teu raiozinho de sol, e da tua gotinha de orvalho, e da tua humildade para vender bombons na praia, fazer teatro ou bordar cintos com lantejoulas, e de um cálice de conhaque nos dias de asma. Tinhas a iluminação necessária para ver com respeito a cada pessoa e a cada profissão, e nada te escandalizava ou te levava a julgamentos desnecessários, como ainda não aprendi bem como fazer. A Justiça, sim, essa te importava muito, e como a defendias!    
                                   Para mim é muito lindo lembrar-te nas tantas atividades culturais que freqüentávamos, chegando sempre linda, com a simplicidade e a leveza daquelas roupas de quem um dia embarcara para valer no Movimento Hippie, e atravessara o Brasil de pé descalço, a fazer teatro nos mais diversos palcos, e a aprender tudo o que alguém podia te ensinar – falavas dos grandes nomes da Arte, do Budismo, e de tantas outras vertentes com a familiaridade com que falavas comigo – e nos finais de noite, nos bares de Blumenau, filosofavas sobre o que eu nunca pensara ainda: que o Movimento Hippie ainda não se completara, que não se podiam medir, ainda, as conseqüências todas dele. E eu te ouvia e te admirava, e tinhas tal humanidade que jamais ficavas indiferente a nada, e jamais desprezavas as coisas lindas como o Amor, por exemplo, mesmo que se tratasse de amor impossível, sem esperança.       E o orgulho que tinhas do lutador teu pai, da tua mãe, dos teus filhos, da netinha Manuela – conheci Manuela no teu colo – Victor veio logo em seguida e ainda tiveste o tempo de conhecê-lo.
                                   Estavas sempre atenta a tudo, a cada conceito e a cada sentimento de cada um, mas o que mais te fascinava, decerto, era a beleza. Naqueles últimos tempos tinhas decidido um novo rumo para a tua vida: o manuseio da beleza. E teu cantinho de dois cômodos ficara cheio de tintas, miçangas, sedas – resolveras usar das mãos que sabiam escrever tão bem para criar beleza em bolsas, em bijuterias, em maravilhosas coisas que eram como que saídas de contos de fadas, e eu ia lá conversar um pouquinho e ficava vendo a tua habilidade com a imaginação e com as mãos, enquanto tomavas teus chazinhos preferidos. Nesse tempo final, costuraste e pintaste para mim um traje de seda amarelinha que é como um sonho: uso-o muito pouquinho, a cada verão, para que ele nunca se acabe. Na verdade, quantos pequenos elos materiais deixaste na minha vida!
                                   Eu voltara de Florianópolis, fazia pouco, trazendo um conjunto de bijuteria de habilidosa artesã, que trançava fios de ouro em forma de crochê. Lembro como pensara em ti desde o momento que vira a criação daquela artesã, e como fui à tua casa para te passar a receita daquela coisa tão linda – mas não chegaste a fazê-la. Bem por aqueles dias, como se estivesse a usar os fios de ouro em formato de luz, subiste no balanço do lá-vai, e partiste para o outro lado, com a leveza de um beija-flor, mas eu nunca acreditei que partiste de verdade. Tua energia plena de liberdade não pode ter-se ido assim completamente, e então, até hoje, quase sempre que o meu coração dói, eu ando pelas ruas olhando para cima, e peço a tua ajuda. Faço-o com simplicidade, assim como tu eras. Digo:
                                   - Abençoa-me, Maria! – e então posso sentir uma carícia na alma que é como se fosse feita por uma pena de pássaro, e sei que me ouves e me consolas. Tu te embalançaste para o lado do infinito, foste pregar miçangas e lantejoulas nos pores-do-sol e passar tinta de seda nas nuvens, mas manténs uma mão estendida para cada um de nós que te amava, e nos afagas a cada vez que precisamos de ti.
                                   Ah! Maria, abençoa-me sempre, por favor! É muito dolorido não te ter por perto!
                                                           Blumenau, 14 de maio de 2008.
                                                           Urda Alice Klueger
Escritora, historiadora, doutora em Geografia pela UFPR.
 

"Eu me dei conta de que cada vez que um dos meus cachorros parte, ele leva um pedaço do meu coração com ele. Cada vez que um cachorro novo entra na minha vida, ele me abençoa com um pedaço de seu coração. Se eu viver uma vida bem longa, com sorte, todas as partes do meu coração serão de cachorro, então eu me tornarei tão generoso e cheio de amor como eles."  (Autor desconhecido) 

 

publicado por o editor às 00:30
link | comentar | favorito

.tags

. todas as tags

.arquivos

. Janeiro 2017

. Dezembro 2016

. Novembro 2016

. Outubro 2016

. Setembro 2016

. Agosto 2016

. Julho 2016

. Junho 2016

. Maio 2016

. Abril 2016

. Março 2016

. Fevereiro 2016

. Janeiro 2016

. Dezembro 2015

. Novembro 2015

. Outubro 2015

. Setembro 2015

. Agosto 2015

. Julho 2015

. Junho 2015

. Maio 2015

. Abril 2015

. Março 2015

. Fevereiro 2015

. Janeiro 2015

. Dezembro 2014

. Novembro 2014

. Outubro 2014

. Setembro 2014

. Agosto 2014

. Julho 2014

. Junho 2014

. Maio 2014

. Abril 2014

. Março 2014

. Fevereiro 2014

. Janeiro 2014

. Dezembro 2013

. Novembro 2013

. Outubro 2013

. Setembro 2013

. Agosto 2013

. Julho 2013

. Junho 2013

. Maio 2013

. Abril 2013

. Março 2013

. Fevereiro 2013

. Janeiro 2013

. Dezembro 2012

. Novembro 2012

. Outubro 2012

. Setembro 2012

. Agosto 2012

. Julho 2012

. Junho 2012

. Maio 2012

. Abril 2012

. Março 2012

. Fevereiro 2012

. Janeiro 2012

. Dezembro 2011

. Novembro 2011

. Outubro 2011

. Setembro 2011

. Agosto 2011

. Julho 2011

. Junho 2011

. Maio 2011

. Abril 2011

. Março 2011

. Fevereiro 2011

. Janeiro 2011

. Dezembro 2010

. Novembro 2010

. Outubro 2010

. Setembro 2010

. Agosto 2010

. Julho 2010

. Junho 2010

. Maio 2010

. Abril 2010

. Março 2010

. Fevereiro 2010

. Janeiro 2010

. Dezembro 2009

. Novembro 2009

. Outubro 2009

. Setembro 2009

. Agosto 2009

. Julho 2009

. Junho 2009

. Maio 2009

. Abril 2009

. Março 2009

. Fevereiro 2009

. Janeiro 2009

. Dezembro 2008

. Novembro 2008

. Outubro 2008

. Setembro 2008

. Agosto 2008

. Julho 2008

. Junho 2008

. Maio 2008

. Abril 2008

. Março 2008

. Fevereiro 2008

. Janeiro 2008

. Dezembro 2007

. Novembro 2007

.subscrever feeds

Em destaque no SAPO Blogs
pub