Sobre o livro:
As notícias sobre corrupção, especialmente na política, dominam com certa frequência o noticiário brasileiro. Muita gente chega a achar que a corrupção é algo “natural” e crescente no país, e tem a mesma percepção sobre a impunidade, certa de viver na pátria onde “tudo acaba em pizza”. Essa visão resignada, porém, reflete um equívoco. É o que argumentam os filósofos Mario Sergio Cortella e Clóvis de Barros Filho em Ética e Vergonha na Cara!, lançamento da Papirus 7 Mares. Eles mostram, num diálogo abrangente, que a ideia de que a corrupção faz parte do ser humano não é mais partilhada pela nossa sociedade.
“Um dos aspectos que favorecem a corrupção do dia a dia é uma cultura em que ela seja entendida como natural, isto é, como parte da vida e, portanto, ‘o que se pode fazer?’. Isso vem sendo rompido no Brasil pouco a pouco. A corrupção deixou de ser entendida como natural, passou num determinado momento a ser percebida como normal, isto é, fazendo parte da norma da vida coletiva, e hoje é entendida como comum; portanto é um critério de frequência. Quando é natural, não há o que fazer... Quando é normal, faz-se necessário mudar a norma, o que não é tão fácil porque depende de outras coisas. Mas quando é comum, é preciso diminuir a frequência”, diz Cortella.
Os autores ressaltam que a corrupção é uma escolha. Não se pode aceitar, por exemplo, justificativas que apelam para o relativismo moral ou para a ética de conveniência, entre elas a de que “o sistema é assim” e é preciso se adequar a ele, ou seja, a corrupção seria inevitável em alguns meios. “É muito comum ouvirmos coisas do tipo: ‘O problema é o sistema’. Aliás, o ‘problema do sistema’ é um argumento que serve hoje como desculpa para tudo. O indivíduo vai pagar uma conta no restaurante e lhe dizem: ‘Estamos com um problema de sistema’ ou vai ao aeroporto e tem que fazer o check-in manualmente porque ‘deu erro de sistema’. Assim, o problema seria o sistema político que levaria a práticas costumeiramente chamadas de corruptas. Eu gostaria de lembrar, no entanto, um detalhe: o que há no mundo da vida são pessoas. E seja qual for o sistema, sempre haverá a possibilidade de dizer: este jogo eu não jogo”, pontua Barros Filho.
E complementa: “Não me venham querer fazer acreditar que as condições de vida possam ser tais que eu me veja impedido, em última instância, até mesmo de recusar-me a participar do jogo quando não houver nenhuma possibilidade de que ele seja conduzido como eu quero. Dizer, portanto, que o sistema constrange à corrupção sem que haja nenhuma possibilidade de questionamento me parece extremamente confortável para todos aqueles que buscam, muitas vezes, tirar de si a responsabilidade pelas escolhas diárias”.
No livro, os filósofos discutem ética e corrupção de maneira ampla, afinal, ambas permeiam todos os setores da sociedade e não se restringem a cargos públicos e eletivos. Pelo contrário, estão presentes desde o berço, na família, na escola, no dia a dia, no trabalho. “Ética implica uma preocupação com o outro que vai além do nosso mero bem-estar e prazer, ou é uma vitória sobre o próprio princípio de prazer em nome de uma convivência melhor. Quando entendermos isso teremos entendido o que importa. Em outras palavras, não somos bichos, que são regidos pela própria natureza e pelo instinto, eu diria que 100% condicionados pelo princípio de prazer. Nós podemos não ser assim, podemos considerar o outro... E considerar o outro é levar em conta sua alegria e sua tristeza como consequência da nossa conduta. Aí poderemos deixar de agir de uma maneira que nos é preferentemente prazerosa em nome do não entristecimento do outro”, explica Barros Filho.
Os autores de Ética e Vergonha na Cara! salientam ainda que a corrupção, contrariando o senso comum, não é maior no Brasil de hoje do que no de antigamente. “Nós não temos no Brasil mais corrupção do que tivemos; temos mais denúncia e recusa. Nós não temos mais sujeira; temos a descoberta do pó e da sujeira acumulada com o levantamento do tapete. Nós temos democracia, portanto imprensa livre, plataformas digitais que indicam os rastros deixados pela corrupção pública estatal e pública privada, e podemos constatar que temos uma recusa maior a ela. É como a violência. Não vivemos numa era mais violenta. Ao contrário, vivemos numa era muito menos violenta do que a história humana teve anteriormente. O que temos hoje são mais notícias sobre a violência e maior rejeição a ela como algo do nosso dia a dia”, diz Cortella.
Para ele, é preciso lembrar que a novidade não é a corrupção, mas a recusa a ela e a apuração dos fatos. “Jamais se discutiria, há 30 anos, reforma partidária e distritalismo, a necessidade ou não de mecanismos de controle, a lei da ficha limpa. Tudo isso faria parte do óbvio. Agora, essa ética que ultrapassa, que transcende, nos leva a ter que pensar nisso. E só começamos a pensar quando algo nos causa incômodo. Antes muita coisa não nos incomodava; agora sim. Nossa sociedade avançou, ainda que às vezes as pessoas pareçam ter certa preguiça. Hoje temos mais razões para sermos decentes, seja por escolha, seja por constrangimento”, afirma.
“O mérito é amplamente decisivo na escolha das autoridades. Os cargos de confiança são, em grande medida, definidos por questões de mérito e, portanto, temos hoje, do ponto de vista da corrupção, uma sociedade muito melhor do que jamais tivemos. O fato de podermos falar disso e de termos, na porta de casa, as notícias que nos trazem os casos de corrupção é uma prova incontestável desse avanço”, complementa Barros Filho.
Os autores discutem, também, a questão da impunidade. “A corrupção não pode ficar de braços dados com a impunidade. E a questão da impunidade está na família, na escola, no conjunto social, na empresa. Nesse sentido, a recusa à impunidade é um passo decisivo. Alguém poderá dizer: ‘Mas tudo sempre acaba em pizza!’. Pelo contrário, em 2012, no estado de São Paulo, 43 prefeitos foram cassados. Em 2013 houve a cassação de mandatos de mais de 260 pessoas que assumiram o Executivo. Quando se propaga, de uma parte da imprensa, que tudo acaba em pizza, isso é uma maneira de incentivar essa percepção. É preciso divulgar punições e atitudes como a de Nelson Piquet, que, pontuado acima de 20 por causa de imprudências na direção, foi fazer o curso de requalificação de motorista em Brasília em vez de lançar mão do tricampeonato mundial de Fórmula 1 para obter alguma vantagem. Quem supõe que ele não sabe dirigir? É que o curso não é para quem não sabe dirigir, mas para quem não sabe obedecer a lei. E é isso que ele foi fazer lá”, enfatiza Cortella.
“Eu queria lembrar que a filosofia começa quando um indivíduo exige a própria punição. Sócrates, condenado à morte pelas falaciosas acusações de corromper a juventude e não reconhecer os deuses da cidade, teve todas as chances de se livrar da pena que lhe havia sido imputada, mas foi julgado pelas leis da cidade. E não admitiria jamais para si uma saída que não fosse o cumprimento dessas leis. Seria indigno demais, portanto ele se pronunciou: ‘Eu daqui não fujo de jeito nenhum, por mais que não concorde com a condenação. Isso é um mero detalhe, a cidade me condenou. Devo me submeter à punição que me cabe’. A filosofia surge assim”, pondera Barros Filho.
Para os autores, toda essa questão passa por duas vertentes: a formação – que inclui os valores e os exemplos transmitidos pela família e pela escola (pois de nada adianta pregar uma postura e agir de outra maneira, quando a situação traz vantagens) – e a coerção.
“Quando uma pessoa me diz: ‘Eu não acredito que isso vá funcionar no Brasil’, posso lembrar-lhe um fato. Em 1994 surgiu no país a primeira legislação que regulamentava a obrigatoriedade do uso de cinto de segurança, como uma forma de impedir a corrupção do corpo mortal, isto é, num acidente o indivíduo não ser vitimado. Pois bem, em primeiro lugar, nos primeiros anos, as pessoas só usavam o cinto por causa do constrangimento da multa pecuniária. Aliás, houve gente na época que até comprou camisa do Vasco da Gama ou da Ponte Preta para simular uma faixa, de modo que o agente de trânsito não pudesse perceber a ausência do cinto. Hoje, quase ninguém se lembra da multa quando vai colocar o cinto. Durante todo esse tempo, as pessoas foram se conscientizando. Até as próprias crianças, por influência da escola, foram ensinadas a chamar a atenção dos pais quanto ao uso do cinto. E ainda, a indústria criou carros que não dão partida no motor se o motorista não estiver com o cinto. Temos, então, um conjunto de medidas de proteção à corrupção do corpo mortal. Outro fato que merece ser lembrado: há 30 anos, num espaço público, eu, que fui fumante, poderia acender um cigarro sem nenhuma dificuldade. Há 20 anos haveria uma placa: ‘Pede-se não fumar’, como um apelo à minha consciência. Há 10 anos haveria uma placa dizendo: ‘Proibido fumar’. Aí não era um apelo à minha consciência, era uma ordem. Hoje, quase não há placas nos lugares e as consciências estão formadas. Seria a minha consciência, se eu ainda fosse fumante, que me levaria a não acender um cigarro”, acrescenta Cortella.