Cidade dos deuses
de Evanice Maria Pereira
Formato : 16x23
Páginas : 336
O LIVRO
Chandra, o príncipe de Naripura, recusa-se a adorar uma deusa de pedra. Alheio ao jogo de interesses que cercam o trono, ele entrega-se a um amor impossível. Kadine, a eleita do seu coração, não é filha da nobreza. Guiado por um amigo invisível, o príncipe mergulha nos mistérios do Além. No horizonte, nuvens negras rondam a Cidade dos Deuses em prenúncio de uma tragédia...
A AUTORA
Evanice Maria Pereira
Profissional da área de comunicação e marketing, é colaboradora do Grupo de Estudos Maria de Nazaré, sediado no Jardim Piratininga, em Osasco (SP) e do Obreiros do Bem, na mesma cidade. Em 1990, iniciou os estudos das Obras Básicas de Allan Kardec: “Nesse ano, comecei a frequentar o Obreiros do Bem. Hoje, com satisfação, faço parte do quadro de trabalhadores da casa. Ministro palestras, colaboro na área de assistência espiritual e também na preparação do boletim informativo da casa”.
TRECHO DO LIVRO
Capítulo 1 Era uma tarde especial. Tranquilo, senhor de rara e indefinível alegria, Viasa desfrutava de sua própria leveza. Sentia o espírito distante do corpo, nas alturas, acima dos montes, voando por entre os deuses que habitam as esferas superiores, onde homem algum, santo ou impuro, atreve- se a desejar alcançar. Na paisagem, nada se modificara durante anos. Contudo, no balcão superior, escolhido para retiro íntimo, na ala lateral do palácio, pensava. Suas vistas, talvez, estivessem embaçadas por longo tempo, ou ainda não soubesse apreciar aquelas paragens como deveria, pois era como se as vislumbrasse pela primeira vez. A luz dourada e maravilhosa do sol derramava-se, generosa, por sobre os extensos vales, recobertos de um tapete uniforme em tons claros e escuros de verde, onde, calmamente, os pastores levavam seus rebanhos para que pastassem, conduzindo-os a beber nos rios e corredeiras. Ao longe, encorpadas florestas de viçosas e cintilantes folhas serviam de majestosa antevisão a uma espetacular obra natural, localizada ao norte, como sentinela intransponível: a impressionante cadeia do Himalaia, com seus belíssimos picos nevados, altos, imponentes, como se quisessem tocar o céu azul celeste, que já anunciava a despedida de mais um dia. Um deleite para os olhos! Viasa permaneceria ali por toda a eternidade, se uma serva não o buscasse para dar-lhe a notícia que tão ardentemente desejava ouvir. Solene, anunciou: – Majestade, está feito! Retirou-se ansioso, depressa, feliz, buscando os aposentos da rainha. Aquele formoso dia reservara-lhe encantadora surpresa. No afã de finalmente reter a surpresa para si, não percebeu que deixara para trás um par de olhinhos curiosos, tentando entender a estranheza do rei. Viasa sentia a alma revirar-se em seu ser, tamanha era a emoção que o assomava, quando colheu dos braços da adorada esposa sua surpresa: um robusto bebê. Seu filho. Seu príncipe. – Meu pequeno... Nanda... Meu bem-aventurado... – murmurou comovido. Cumpriria o desejo da divindade protetora de seu reino. Segundo o sumo sacerdote, a deusa Nari desejava que o príncipe fosse chamado “bem-aventurado”, porque descia à Terra em missão divina. O bebê seria seu mensageiro. O pai sorria entre lágrimas, o coração saltava no peito como um potro indomável. Acompanhado do sumo sacerdote, Nura seguiu para a sacada do palácio que dava vistas para a cidade e onde era permitido o acesso aos súditos. Afinal, o bebê não era somente dos reis, mas de todos os devotos. Era o santo enviado, em agradecimento à fidelidade de dois séculos de adoração fervorosa. Na sacada, Viasa custava conter o pranto insistente. Percorreu o olhar por sua amada Naripura – cidade de Nari, em hindu –, reino temido e respeitado pela força e justiça de seu governante. Forçou as vistas tentando divisar os pilares respeitosos, tão diminutos àquela distância, tal o tamanho da cidade. Como não conseguia vê-los, atentou para a praça principal, defronte à casa real, ornada com imenso monumento à deusa; fez uma rápida oração em agradecimento. Ainda quis observar o templo principal, à esquerda da praça; admirou-se das formas precisas – uma cúpula abobadada, sustentada por colunas de pedra polida e cuidadosamente talhada. Por fim, seus olhos foram deter-se na multidão em festa. Como amava toda aquela gente! A turba bradava, sem cessar, o nome do menino-santo, proferindo saudações e bênçãos. Dançava e cantava músicas sagradas, combinando sons de tambores e flautas. Mas o rei queria saber de sua rainha. Recolheu-se aos aposentos da esposa, enquanto continuava sendo observado por aqueles mesmos olhinhos curiosos de antes. Silencioso, o menino limitava- se a segui-lo, apanhando suas menores atitudes e palavras. Sacerdotes e servos acercavam-se do rei, obrigando-o a manter-se a distância. Ao chegar ao quarto da rainha, o menino reservou-se a um canto, ninguém o percebia. Viu o rei pousar um suave beijo nas mãos da esposa, o bebê ser envolvido em mantos e ser entregue à rainha para a primeira mamada. Então, instintivamente, a soberana o procurou pelo quarto. Sorriu. – Então, é aí que você está? Finalmente deram conta de sua presença. Todos se voltaram para o cantinho do quarto. A rainha pediu que se aproximasse. Foi algo desajeitado. O rei afagou os cabelos curtinhos. – Observe, – disse a senhora mostrando-lhe o bebê – não é bonito? Ele sorriu confirmando. Ficou extasiado. Como uma boca podia ser tão pequena e um rosto tão miúdo? Voltou-se à senhora: – Eu não disse que havia um bebê na sua barriga? Mádri, Viasa, todos se entreolharam, desconcertados. Era verdade o que lembrava o menino. Ele avisara, tempos atrás, que um dia a rainha ganharia um bebê e ninguém considerou o dito de uma criança. Imaginações, certamente. Afinal, ele não poderia prever coisa alguma. Não era um mensageiro nem poderia ter dons divinos. A deusa do reino informaria por intermédio de seus sacerdotes. – Ainda não aprendeu a ter modos? – Mádri foi severa com ele. – Sabe que não pode dizer tudo que deseja! O pequenino baixou os olhos, respeitosamente. Foi-se afastando devagar, até sair repentinamente em correria – uma costumeira atitude sua, quando sabia ter cometido uma falta. – Chandra! Chandra! O chamado foi em vão. Pelos corredores por onde passava, cada sentinela rendia reverências ao príncipe herdeiro, habituados a vê-lo saltitar e a transpor os ambientes da casa real, sempre veloz. O nobrezinho, olhar avivado, pouco maior que um cordeiro, era a luz do palácio, falador e inteligente. Difícil encontrar quem resistisse a sua alegria contagiante. Os chamados ficaram somente pelo palácio, pois o menino já havia ganhado os jardins. Com cuidado, examinou o local para certificar-se de que ninguém o via. Feliz, saiu por uma passagem secreta, rumo ao bosque, longe da cidade – seu lugar preferido para brincar. Saiu secretamente, o rei não gostava que ele andasse por lá sozinho. Rápido, correu incansavelmente, saltando corredeiras e arbustos até que, de cima de um pequeno monte facilmente escalado, avistou os pequenos camponeses que habitavam aldeias próximas. Foi encontrá-los, ansioso por dar-lhes a notícia. – Nasceu meu irmãozinho! – disse sem rodeios. – É forte e grande e já mama em minha mãe! Meninos e meninas curvaram-se, em profunda reverência ante o amiguinho. – Por que ainda se curvam diante de mim? Uma pequena adiantou-se: – Você é príncipe, Chandra, nossas mães ensinam que não devemos deixar de reverenciá-lo, mesmo que lhe pareça exagero. Você é uma criança como nós outros, no entanto, um dia vai subir ao trono e a coroa de Viasa será sua. – Tenho apenas seis anos! – O que não o faz menos nobre... – É bobagem. Se eu trocar as vestes, colocar umas iguais as suas e ficar descalço, quem saberá que sou príncipe? A pequena não soube responder e Chandra sorriu de seu embaraço. Preferia que os amiguinhos o vissem apenas como um menino. Um garoto maior, oito ou nove anos, aproximou-se do grupo. Sisudo, atentou para o nobrezinho estranhamente, sua presença parecia desagradá-lo. – Ramai, nasceu meu irmão! – Grande! Irmão, também eu tenho e já adulto. Tão bravo e valoroso quanto o rei, seu pai! Chandra desanimou. Ramai sempre o tratava rispidamente, mesmo que se esforçasse em mostrar-se amigo. – Ramai, algum dia o desagradei? Parece me detestar... O outro o examinou com descaso. – Não gosto de você... é só. – Por qual motivo? – Não gosto de você e pronto! Sua voz é irritante, seu cheiro me sufoca. Tenho raiva de sua falsidade, deseja ser tratado como um menino comum e vem aqui vestido assim, tão ricamente. – Estas vestes são tudo que tenho. Todas as outras são iguais. – Então, por que não fica no seu palácio? Por que vem aqui afrontar a pobreza com seu luxo? Entristecido, o príncipe calou-se, incapaz de compreender o rapazote. Uma pequerrucha, Kadine, aproximou-se: – Não fique triste, alteza. Ramai tem inveja de você. O garoto mal-humorado apanhou-a rudemente pelos braços: Como ousa me chamar de invejoso? – bradou esbofeteando a garotinha. Kadine caiu no gramado, um filete de sangue aflorou da narina ferida. Chandra protestou: – Como pôde? Kadine é bem menor do que você! – Ela me ofendeu! O príncipe deteve-se, sem poder continuar a discussão. Sentiu uma brisa singular e perfumada percorrer-lhe o corpinho tenro, amainando seu ânimo. Sabia o que significava. Olhou por entre as árvores do bosque e lá se esgueirou um vulto. Imediatamente, suas ideias se aclararam. Voltou-se a Ramai fixando-o firme: – Nem eu nem Kadine podemos responder por seus desgostos. Ninguém pode, aliás. Aqui, entre nós, não há nenhum culpado por seu coração amargurado. Se o seu pai é foragido por crime, não fomos nós que o fizemos matar. – Que está dizendo? – Você bem sabe, a vergonha o consome. Comparou seu irmão ao valoroso rei, mas somente você sente o quanto é difícil saber que ele não passa de um ladrão. Ramai fez menção de investir contra o príncipe, contudo, deteve-se diante de sua atitude serena, imperturbável. A força de seu olhar era aterradora. Correu para longe, como se desejasse fugir de si mesmo e daquela triste realidade. Chandra foi ajudar a amiguinha a erguer-se, enquanto ouvia suas perguntas ansiosas. – É verdade o que disse? – Na aldeia, acredita-se que o pai de Ramai viaja com mercadores, e agora você diz que ele é foragido! E assassino também! Como soube? Só então entendeu o erro cometido. Não devia ter exposto aqueles fatos. Falou quase que suplicando: – Por nossa deusa e mãe Nari, não falem nada sobre essas revelações. Nem mesmo aos seus pais. Devem guardar segredo. Muitos problemas poderão surgir se essas verdades vierem à tona. Levem Kadine para casa, agora. Ela ainda sangra e falem que ela caiu e se feriu acidentalmente. As crianças seguiram levando a pequena e Chandra preferiu ficar algum tempo caminhando por entre as árvores, mal sabendo dos comentários dos amiguinhos. – Sua Alteza, às vezes, é tão estranho. Se as crianças conhecessem seus segredos o estranhariam ainda mais e, talvez, fugissem amedrontadas. Sabia que os camponeses teriam medo, por isso, não lhes falava. Nem mesmo os reis conheciam seus íntimos pensamentos acerca de seu companheiro oculto. “O Amigo”, como o chamava, era um vulto luminoso que, após brisa agradável e perfumada, surgia muito ligeiramente por entre as árvores do bosque, nos ambientes do palácio, nos jardins, onde quer que fosse. O Amigo falava-lhe sobre acontecimentos; por vezes, podia ouvir sua terna voz com nitidez. Suas palavras soavam como o suave bater das asas de uma borboleta, bem perto do ouvido. Suas aparições eram espontâneas. Mostrava-se sempre calmo, cuidadoso e gentil. Era um grande amigo. Após longa caminhada pensando muito no companheiro, o menino aproximou-se de uma vertente e lavou o rosto suado e quente pelo intenso calor. Bebeu água em abundância e recostou-se, cansado, numa pedra. Olhou ao redor. Será que o amigo ainda estava presente? – Meu irmão nasceu no tempo certo, como você disse. Bem, acho que já sabe... Não ouviu resposta. Não costumava responder de pronto. O nobrezinho estava muito cansado. Deitou-se na relva macia. – Errei, não foi? Não devia ter falado sobre os parentes de Ramai. Falei demais, como a rainha sempre diz. Se as crianças não guardarem segredo, será uma confusão. Sou mesmo descuidado! Você me disse que não devo dizer tudo que ouço. Pelo bosque, somente o som dos animais e das vertentes. Era muito agradável a calmaria do lugar. Chandra caia em sono lentamente. – Não pode dormir! Se Viasa der por sua falta, e não o encontrar, ficará zangado! Retorne ao palácio antes que escureça, a noite não demora! – Oh, sim. Fico só mais um pouco e vou. Mal acabou de falar e adormeceu tranquilamente. Preocupado, Viasa mandara duas servas e um sentinela procurar pelo seu herdeiro nas cercanias. A noite não tardaria. No entanto, os três achavam-se fartos da busca e começavam a se desesperar. O que teria acontecido ao pequeno? Não o encontravam em parte alguma. – Não vamos desistir, venha – disse Tati. Nesse momento, sua companheira apoiou-se num tronco caído. – Não posso, doem-me os pés e os braços ardem de tanto machucá-los em espinhos. – Pois tenha atenção pelo caminho! Precisamos encontrar o príncipe! O sentinela desanimara-se. – Príncipe teimoso! Sabe que não deve sair sozinho! Chego a temer pelos próprios pensamentos! Tati não desanimava. Forçava o coração à resistência, afugentava maus presságios. No céu, se apagava a luminosidade do dia, logo seria difícil enxergar. Onde procurar? De súbito, um pequeno facho faiscante rodopiou no ar, como passarinho, brincando, para depois permanecer inerte diante das servas e do soldado, que, temerosos, ajuntaram-se. – Que significa esta luz? – Será visão? – Um ser divino? Tati mirou com firmeza. Experimentou sensação que nunca tivera. Era como se levitasse ao sabor da mais agradável brisa. – Creio... que devemos seguir a luz... – disse, um tanto aturdida. O sentinela e sua companheira entreolharam-se desconfiados. – Não tenham medo. Venham. Lentamente, passo a passo, os servos reais foram seguindo o facho luminoso, atentos na direção que ele impunha. Embrenharam-se na mata, por lugares já vasculhados, mal sabiam ou suspeitavam para qual fim seguiam a luz. De repente, o guia luminoso avançou rápido, indo parar numa clareira, que se transformou numa imensa estrela de diversas pontas, e uma delas, a mais longa, apontava para o solo. – A luz parece indicar algo! – o sentinela observou. Felizes com o que suspeitavam, adiantaram-se rapidamente até o local, onde, surpresos, contemplaram o principezinho adormecido na relva. Sem demora, Tati tratou de despertá-lo, enquanto a luz se desvanecia suavemente, ao som das fervorosas preces e agradecimentos de todos. Chandra despertou esfregando os olhos. – Tati! – Alteza! Este é lugar de adormecer? – Não percebi que dormi... O rei mandou me procurar? – Sim e está nervoso como nunca! – Oh não! Por Nari, não contem ao rei que estive no bosque. Serei castigado. – Melhor seguirmos logo para o palácio antes que anoiteça. Venha, Alteza, estamos distantes da carruagem. Ela apanhou o garoto no colo e voltou-se aos companheiros: – Conversaremos sobre o ocorrido em momento oportuno. Agora, sigamos. No horizonte, um último raio de sol ia se apagando, quando os três chegavam ao palácio com o garoto. O rei achava-se ao trono, passando instruções ao seu cocheiro, seu conselheiro e servidor de confiança, a quem cabia a responsabilidade de conduzir a carruagem real com zelo e segurança. O monarca ouvia com atenção o encarregado, responsável pelo transporte da família real. Envolvido nas atividades rotineiras do monarca, o servidor observava o que transcorria ao seu redor e informava ao rei suas respeitosas observações. Em dez dias seria a festa de comemoração ao nascimento do mensageiro e muito havia que se preparar. Expedidas as devidas ordens, o cocheiro saiu dando lugar aos recém-chegados. Eles foram para diante do trono levando Chandra à frente. Ao observar o aspecto severo do pai, preferiu não mirá- lo com receio de reprimendas. Viasa o examinou meticulosamente. – Prefiro que me olhem nos olhos quando desejo falar. Ergueu o olhar vagarosamente. – Onde você estava? O nobrezinho estremeceu. O pai era bondoso, amigo, cuidadoso, porém, desagradava-se com sua desobediência. Proibira terminantemente que fosse sozinho ao bosque e prometera castigos se ignorasse tal ultimato. Grande foi o seu alívio, quando Tati interveio chamando o monarca em reserva. O príncipe tentou ouvir, sem sucesso. Ficou observando os dois conversarem. – Majestade, encontramos o pequeno no bosque. – Como é teimoso esse menino! Por que insiste em desobedecer? – Antes que o repreenda, permita que eu diga uns fatos que muito interessarão ao senhor... Eu e meus companheiros estamos ainda maravilhados com a visão que nos ocorreu. Juro: é a mais pura verdade. Relatou resumidamente o ocorrido. O rei franziu a fisionomia, avaliando. – E o que pretende me fazer entender com esses fatos? – Cremos, Majestade, que, apesar de ser mesmo impróprio uma criança da idade de Chandra passear sozinha, a sua preocupação quanto à segurança do herdeiro não tem fundamento. Afinal, uma entidade tratou de protegê-lo e nos fez encontrá-lo quando nossas esperanças se esvaiam. Ele, certamente, sente-se seguro e não teme nenhum lugar. Descrente, o rei sorriu. – É preciso um relato tão fantasioso para que o pequeno seja poupado de uma reprimenda? Bem sei de seu mimo por ele, Tati. – Majestade! Juro! O que digo é verdade! Viasa sentiu na serva uma sinceridade cristalina. Poderia ser mesmo verdade. Atentou para os outros dois. – O que Tati diz é real! Confirmaram quase que em aflição, acenando com as cabeças. O rei preferiu refletir antes de qualquer conclusão. Não era novo ouvir fatos inusitados com respeito a Chandra. Uma singularidade aqui, outra ali. Profecias, ditos de elevada consideração para uma criança que mal sabia ler. – E todos vocês, o que pensam sobre o significado da luz? – Pelas boas sensações, pelo cuidado de mostrar-nos o paradeiro do príncipe, a entidade iluminada, certamente, era um mensageiro celestial. Era indescritível a sua irradiação, maravilhosa sua presença. Serei incapaz de esquecer o que vi – a sentinela falou por todos. Viasa examinou-os detidamente. Por fim, convenceu-se de que o relato era verdadeiro, assim, dispensou os servos e chamou o herdeiro para perto. Ele se colocou diante do pai, acabrunhado, a esperar repreensão. Entretanto, para sua surpresa o rei o afagou carinhosamente. – Então? O que tanto o agrada no bosque? – Lá tem muito espaço. As plantas são perfumadas, as águas têm um som gosotso de ouvir. Voam muitos pássaros. Os camponeses das aldeias vão lá brincar e fico com eles. – Tem amigos lá? – Muitos! – Contudo, sabe que o local é perigoso. Existem serpentes venenosas e animais podem atacá-lo. – Também os animais são meus amigos. Nenhum jamais me assustou. – Acredito. Mas, fique avisado: não o quero só por aquelas cercanias. Quando quiser passear, chame por uma sentinela, alguém que o possa defender. – Obedecerei. Não voltarei só ao bosque. – Lembre-se: não proíbo certas coisas para magoá-lo. É que o amo demais e temo por você, meu pequeno. Chandra abraçou o pai carinhosamente. – Agora, procure por sua mãe, ela quer vê-lo. Antes que saísse em correria, Viasa ainda o interpelou: – Você ouviu o que Tati falava? – Sobre o quê? – Tati me falou de uma luz miraculosa que apontava seu paradeiro. Viu tal luz? – Eu dormia na relva quando fui encontrado e nada vi. – Então, agora vá, a rainha o aguarda. Foi-se o pequeno e deixou o monarca a sorrir, envolvido em doces lembranças. Impossível esquecer a noite abençoada do nascimento do herdeiro. A rainha, em vias de dar à luz, não se comportava como futura mãe. Era como se nada a incomodasse. Desapareceram enjoos, tonteiras e inchaços. Ao marido aflito e preocupado que pedia seu resguardo, ela respondeu alegremente: – Que posso fazer se não me sinto mal? Brota de mim uma felicidade, um bem- estar, como se os deuses me preparassem a melhor das surpresas! A soberana estava correta. No cair da noite, nasceu o tão aguardado herdeiro de Naripura, recebido em festa, após um parto tranquilo. Desde então, a casa dos reis conheceu somente a felicidade. Enquanto rememorava momentos tão belos, o monarca prendeu o olhar no passadiço pelo qual o pequeno saiu a correr. Como era feliz aquele pai! – Criança bendita! Adiantou-se até a imagem da deusa Nari. Prostrou-se: – Eu agradeço a sua infinita bondade em ter-me confiado joias de incalculável valor: Chandra, meu sucessor, e Nanda, seu mensageiro. Os olhos de esmeralda da estátua continuaram tão gelados quanto a pedra na qual foi esculpida. Eram vagos, parados no nada, lembrando a tristeza das coisas mortas. Diante da deusa, Viasa perturbava-se. Incômoda sensação de vazio afligia seu coração ávido de respostas. Mas, como obtê-las, se nem mesmo atrevia-se a formular as perguntas? Ergueu-se, meditativo. Melhor seria preparar-se para a ceia.
***
UM LANÇAMENTO DA
Butterfly