Leonardo Boff: Presidenta Dilma iniciou o diálogo aberto
Uma das principais propostas da recém reeleita Presidenta do país, Dilma Rousseff, começou a se realizar: dialogar aberta e construtivamente com a sociedade e com os diferentes segmentos sociais. Foi assim que no dia 26 de novembro, por quase duas horas, dialogou com representantes do Grupo Emaus, nomeadamente, Frei Betto, Luiz Carlos Susin, Rosileny Schwantes, Maria Helena Arrochellas, Marcia Miranda e Leonardo Boff.
Este grupo, composto por cerca de 40 pessoas que já existe há 40 anos nasceu como resistência à ditadura militar, reunindo intelectuais e religiosos de várias partes do pais para analisarem a conjuntura política e eclesial e traçarem ações concretas junto às bases para acelerar o resgate da democracia, manietada pelo regime ditatorial. O sonho nosso era e é grande: o de gestar um país que inclua no seu orçamento aqueles que há quinhentos anos estavam à margem. Entre os presentes havia presos políticos e torturados e praticamente todos vigiados. Mas enfrentamos os riscos e as ameças por uma causa maior que implica um país justo e solidário.
O encontro seu de nesta comunhão de espírito: o coração valente da Presidenta que suportou pesadas torturas sem nunca entregar ninguém e nós, de nosso jeito, expusemo-nos pela mesma causa, naquele tempo e agora. Ela logo entendeu o significado de nossa presença, solicitada por nós. Não íamos pedir nada, apenas reforçar sua determinação de seguir na construção do projeto originário do PT, o de criar uma sociedade com menos perversidade e que desse centralidade aos mais pobres e invisíveis, não obstante os constrangimentos da macroeonomia dominante.
Entregamos-lhe um documento - O Brasil que queremos – com 16 pontos que podem ser lidos no meu blog (leonardoboff.wordpress.com) onde ressaltam: a reforma do sistema político, tornar o modelo econômico mais social e popular, a promoção da reforma agrária e urbana, a defesa dos direitos dos povos indígenas e quilombolas entre outros.
A conversa transcorreu de forma extremamente franca e jovial, reconhecendo acertos e equívocos. Ressaltamos especialmente a necessidade de a Presidenta retomar o diálogo com a sociedade, principalmente com os movimentos sociais organizados. Imediatamente foi marcada na próxima semana um encontro com a Coordenação dos Movimentos Sociais e outra com a Coordenação Nacional do Movimento dos Sem Terra.(MST). Todos insistimos em retomar a educação política das bases, dentro da pedagogia de Paulo Freire, em especial dos jovens. Não adianta mostrar apenas obras. Há que se mostrar que elas obedecem a um projeto político do Governo em benefício dos mais necessitados como Minha Casa Minha Vida, Luz para Todos e outras iniciativas. Este vínculo de causalidade torna consciente a população e reforça o projeto popular, que precisa ser fortalecido para superar a nossa abissal desigualdade social.
Salientamos a importância de reforçar e ampliar iniciativas de cunho social e ambiental como o projeto “Cultivando Água Boa” implementado pela hidrelétrica de Itaipu, envolvendo um milhão de pessoas que incorporou, mediante uma sistemática educação ecológica (formaram-se mais de 1600 educadores ambientais), recuperando rios, introduzindo a agricultura orgânica, integrando povos indígenas e quilombolas e outros tantos benefícios, melhorando a vida das populações e da comunidade de vida. A Presidenta se mostrou entusiasmada pelo projeto que já tem mais de 11 anos e pelas pessoas que o levam avante, com custos mínimos e em parceria com os 29 municípios lindeiros e de sua eventual implantação em outras hidrelétricas.
Ponto importante foi a educação política dos jovens para que não sejam meros consumidores mas cidadãos críticos e participantes. É um desafio para os grupos das Igrejas que se inserem nos meios populares e ao próprio PT que deve retomar uma ligação orgânica e dialogar e aprender com eles.
A Presidente se mostrou especialmente sensível à questão dos direitos humanos e aos Centros de Referência dos Direitos Humanos, na perspectiva de fortalecer iniciativas comprovadamente sérias que estão acontecendo em todo o nosso país.
A questão ecológica foi considerada tão importante e complexa que merecerá um outro encontro específico.
Nada pedimos. Não nos moveram interesses corporativos ou pessoais. Apenas oferecemos nossos préstimos, caso sejam solicitados pela Presidenta. Ela se mostrou comovida e aberta a outros encontros mais sistemáticos, pois se deu conta de nossa vontade de colaboração na construção de uma sociedade mais humana, mais justa e cooperativa, onde seja menos difícil a vontade de transformação social e o amor humano entre todos.
(*) Leonardo Boff, ecoteólogo e escritor
Os membros do Simpósio Temático nº 13: “Indigenismo e Movimentos Sociais Indígenas” proposto no XV Encontro Estadual de História: “1964-2014 – Memórias, testemunhos e estado” realizado entre 11 e 14 de Agosto de 2014, Seção Santa Catarina (ANPUH-SC), vem a público divulgar Nota de Repúdio à Empresa Rede Brasil Sul de Comunicação (Grupo RBS) devido à reportagem “especial” veiculada em seus meios, sobretudo no Jornal Diário Catarinense, intitulada: Terra Contestada, nos dias 07, 08, 09, 10, 11 e 12 de Agosto de 2014.
É importante salientar que não se pretende com esta nota, repetir o conteúdo vexatório, discriminatório, racista, tendencioso, “parcial” e contraditório das reportagens veiculadas, pois estaríamos corroborando com ideias e pensamentos que marginalizam os povos indígenas ao longo da História deste país. Estes povos vêm sendo paulatinamente execrados e deixados à margem de uma sociedade que se diz plural, diversa, pluriétnica e culturalmente rica quando se trata de divulgar e identificar a imagem da região a qual pertence este estado de Santa Catarina.
Inicialmente, convém questionar e depois esclarecer a tão propalada imagem desta empresa, que tenta promover um jornalismo pautado na imparcialidade. Caso não seja de clareza de seus dirigentes e funcionários, as reportagens apresentam conteúdo conivente e subserviente ao sistema político e econômico dos setores administrativos dos governos, quer em esfera estadual ou federal.
No que se refere à “imparcialidade” do caso em questão, foram ouvidas pessoas de duas entidades, uma governamental e outra não governamental, que segundo a própria reportagem, fazem o mesmo trabalho. Então, ao apresentar informações que denotam juízo de valor, verifica-se uma postura parcial, a qual confunde o leitor desavisado e leigo sobre o assunto. Os sujeitos envolvidos e atacados pela reportagem, sequer foram ouvidos, lideranças (cacique, professores, anciões), famílias Guarani que residem na comunidade Itaty do Morro dos Cavalos. A reportagem veiculou a entrevista de apenas um Guarani, que há algum tempo já não reside mais na Comunidade Itaty. Isso é parcialidade. A parcialidade está visível também em relação aos estudos, laudos e pareceres técnicos, pois são consideradas pela reportagem apenas informações fragilmente embasadas por um antropólogo já desligado formalmente da Associação Brasileira de Antropologia – ABA.
Poderíamos ainda elencar uma série de procedimentos equivocados no caso dessa série de reportagens e de outras que já foram veiculadas pela mesma empresa de jornalismo e comunicação. Na coluna política do Diário Catarinense, é recorrente a postura de contradizer e execrar os indígenas da comunidade Itaty (Morro dos Cavalos), inclusive, impingindo aos Guarani, a culpa pelas mortes ocorridas na BR 101.
Além dos antropólogos, do CTI, da FUNAI, existem muitos pesquisadores realizando estudos com os indígenas, sobretudo com o povo Guarani, nas mais diferentes áreas do conhecimento: História, Biologia, Gestão Ambiental, Engenharia, Ciências da Saúde e outras. Convém salientar os estudos realizados por estudantes indígenas Guarani, moradores da própria aldeia Morro dos Cavalos, acadêmicos da Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica, na UFSC. Com isso, ressaltamos que os indígenas são agentes protagonistas de suas próprias histórias e suas opiniões e percepções devem ser consideradas em um Estado que se diz exemplo de multiculturalidade.
Em se tratando de verbas, trazemos à memória, os vários momentos em que foram dispensados recursos para a finalização das obras da BR101. Nestes últimos 15 anos foram pelo menos três vezes em que foram anunciados recursos que possibilitariam a finalização da obra. Onde foram parar estes recursos?
Não se pode conceber e calar-se sobre reportagens como estas, que são racistas, preconceituosas e incitadoras de violências, em um tempo em que o racismo tornou-se crime, o preconceito é próprio dos ignorantes e toda forma de violência contribui para a falta de diálogo e a intolerância nos contextos social, cultural e econômico.
Assinam:
Membros participantes do Simpósio Temático nº 13: “Indigenismo e Movimentos Sociais Indígenas” no XV Encontro Estadual de História: “1964-2014 – Memórias, testemunhos e estado” realizado entre 11 e 14 de Agosto de 2014.
Florianópolis, 13 de Agosto de 2014
BRASÍLIA REVISITADA
de EMANUEL MEDEIROS VIEIRA
PARA CLARICE E LUCAS, MEUS FILHOS — QUE AQUI NASCERAM
Não, não quero falar da cidade estigmatizada, dos poderes – podres ou não.
Não a urbe oficial, dos altos tecnocratas, dos políticos que só conhecem o aeroporto, carros oficiais, palácios, ministérios, o Congresso, restaurantes chiques, e boates de “moças de luxo” –– caras, da mais antiga profissão..
A cidade que amo é outra,
Das chuvas de janeiro (que agora pararam) de tantas mangas, dos verdes belos, das goiabas crescendo, da Clarice, do Lucas, dos piqueniques improvisados, do Parque da Cidade, e de tanta gente honrada que aqui labuta e corre atrás dos seus sonhos.
Mudar essa imagem eu sei que não vou.
Mas creio que o meu papel é o de “evangelizador laico”.
Se mudar uma só visão, um só olhar estereotipado, ficaria compensado.
EIS-ME DE VOLTA, PROVISORIAMENTE, DA PRIMEIRA PARA A ÚLTIMA CAPITAL.
Não, os poderes já não me interessam.
CADA MOMENTO É UM LUGAR ONDE NUNCA ESTIVEMOS.
E tento redescobrir cada momento.
O que é o tempo,?, pergunto-me sempre – desde que iniciei no ofício de tecer palavras.
Virgílio captou magistralmente: “Sede fugit interea , fugit irreparabile tempus” (“mas ele foge: irreparavelmente o tempo).
E Clarice Lispector pergunta: “Oh Deus que faço desta/felicidade ao meu redor/que é eterna, eterna,eterna/e que passará daqui a um instante/porque só nos ensina/a ser mortal?”
Mas o que queria dizer?
Que há uma cidade escondida, além do olhar apressado.
Há uma cidade mais funda – das linhas retas.
Algo que ficará, além das celebridades vãs, da vida de gente que se atribui muita importância – ministros e deputados que logo serão esquecidos.
Quem se lembra de Médici? Quem se esquecerá do Dr. Oscar e de Lúcio Costa?
É por essa razão que dedico o curto texto ao Lucas e a Clarice.
Não são “candangos”, pioneiros.
Ele está com 10 anos, ela com 27.
E há algo de novo nos seus olhares.
Esperança?
E enquanto escuto um pássaro cantando, o sol batendo na mesa em que escrevo, não consigo evitar o lugar-comum: há que celebrar a vida. Algo do nosso trabalho ficará – ficará. E sei que toda a glória é finita, que é sempre assim (apenas passamos). E o tempo foge.
Levanta o povo charrua
Por elaine tavares - jornalista
Era uma fria manhã de 1834 na bela Lyon. Enquanto a cidade amanhecia, com seus odores de pão fresco e gentes malcheirosas, um homem jovem andava ligeiro pela rua ainda vazia. Carregava nos braços um bebê. Vestia-se pobremente e volta e meia olhava para trás, esperando ver soldados. Os poucos transeuntes não sabiam, mas ali ia um valente cacique charrua, chamado Tacuabé. Carregava a filha da também charrua Guyunusa que, como ele, fora aprisionada na região da Banda Oriental (hoje Uruguai), e remetida a Paris, como um bicho raro. Eram quatro os índios levados para a França: Tacuabé, de 23 anos, Vaimava, um velho cacique, Senaqué, um conhecido pajé charrua e Guyunusa. Obrigados a se apresentarem em circos pelos arredores de Paris, sofrendo maus tratos e saudosos de sua terra, os charrua foram morrendo um a um. O primeiro foi Senaqué, que definhou de tristeza, depois o velho Vaimaca. Guyunusa, com pouco mais de 20 anos, tomada pela tuberculose, morreu em Lyon, deixando um bebê que se acredita fosse filha de Vaimaca. Obteve de Tacuabé a promessa de que a garota haveria de ser livre. E assim, tão logo ela fecha para sempre os olhos, o jovem charrua decida escapulir do circo, levando com ele a menina. Os historiadores nunca acharam o rastro do cacique e da menina charrua, mas, se sobreviveram é possível que hoje o sangue charrua também corra em alguma família aparentemente francesa. Porque se ser charrua é ser valente, não há dúvidas de que Tacuabé conseguiu garantir a vida, dele e da menina, naqueles longínquos e tristes dias.
Quem eram os charrua
Corria o ano de 1513 quando Juan de Solis chegou ao Rio da Prata e isso marcaria para sempre a vida dos povos que ali viviam desde há séculos. O povo charrua era uma gente aguerrida que habitava as pradarias do que hoje é o Uruguai, a pampa argentina e parte do Rio Grande do Sul. Chamado de vale do rio Uruguai essa era uma região de coxilhas e muitas pradarias, espaço de ventos intensos tanto no verão como no inverno. Além da gente charrua e do povo minuano, dividiam o espaço as capivaras, ratos do banhado, pecaris, veados, jaguatiricas e o mítico ñandu (a ema).
Já em 1526, o espanhol Diego Mogger relata em suas cartas sobre esses indígenas que eram vistos de longe, observando e sendo observados bem na entrada do Rio da Prata. Os espanhóis descreviam os charrua como uma gente moreno-oliva, de estatura média, pomo de adão saliente, dentes bons, rosto largo, boca grande e lábios grossos. Os homens usavam cabelo bem comprido, muito lisos, e tinham por costume amputar um dedo da mão. Já os minuano eram um pouco mais baixos, de fala baixa, melancólicos e igualmente acobreados. Durante todo o processo de ocupação do território do que hoje é o sul da América Latina eles se mantiveram à distância, porque seu espaço era o interior e tantos os espanhóis quanto os portugueses preferiam se radicar nas margens do mar ou dos grandes rios. Mesmo assim, desde a chegadas dos invasores muitas foram as escaramuças, principalmente com os charrua. Desde o ano de 1573 já é possível encontrar relatos de lutas com os espanhóis.
Eles viviam como grupos seminômades, em acampamentos estáveis, ora aqui, ora ali, seguindo o ritmo das estações. Caçavam e plantavam coletivamente num território que, depois da invasão, ficou durante mais de dois séculos como fronteira não demarcada entre Espanha e Portugal. Era visto pelos invasores como “terra de ninguém”. Mas, ao contrário do que poderiam crer os que chegavam da Europa, aquele era um espaço já há centenas de anos ocupado não só pelos Charrua mas também pelos povos Minuano, Tapes, Chaná e até Guarani. Ainda assim, apesar das lutas esporádicas, os originários eram ignorados. "Sem alma", diziam os padres. Assim, para os europeus, Joãos e Marias ninguém.
Só que, na verdade, esses povos já tinham desenvolvido uma cultura. Tinham uma organização comunitária e eram regidos por um conselho da aldeia. As tarefas eram definidas, os homens caçavam e as mulheres cuidavam dos toldos que lhe serviam de abrigos. Desenvolveram tecnologias eficazes para a caça como é o caso da boleadeiras, instrumento usado para derrubar os ñandus e bichos maiores. Já cozinhavam a carne e produziam vasos de barro escuro, os quais serviam para uso doméstico. Reverenciavam as forças da natureza e acreditavam na ressureição, uma vez que seus mortos eram enterrados com todos os seus objetos pessoais, para uso na outra vida. No verão andavam nus, no inverno se ungiam com gordura de peixe e usavam peles de animais. As mulheres usavam uma espécie de fralda de algodão, hoje conhecida como xiripá, chamado por eles de cayapi. Os homens usavam uma vincha (faixa de pano) na testa. Toda a organização girava em torno do núcleo familiar. Um homem quando queria se casar fazia o pedido ao pai da moça e já montava sua tenda. A comunidade não tinha hierarquia, tampouco chefe, tudo era decidido no conselho. Presos de guerra não eram escravizados, viravam família e se integravam na vida da comunidade. Todo grupo tinha uma mulher velha que cuidava da saúde. O grupo tinha por costume se reunir no cair da noite para planejar o dia seguinte, mas nada era imposto. Era um povo livre e essa forme de viver iria, três séculos mais tarde, encantar o jovem Artigas, que seria um dos libertadores nas guerras de independência.
A ocupação espanhola
A vida dos charrua começaria a mudar radicalmente a partir de 1607 quando os espanhóis introduzem o gado bovino e equino na região e, como as pradarias não tinham fim, os animais se espalhavam chegando a gerar imensos rebanhos selvagens chamados de “cimarrón”. Tão logo conheceram o cavalo, os charrua se encantaram com a beleza, a velocidade e a docilidade dos mesmos. Trataram de aprender a lidar com eles e em pouco tempo era exímios cavaleiros, imbatíveis no lombo nu dos velozes cimarrón. Nas batalhas, eles se agarravam às crinas e permaneciam deitados de um lado, praticamente invisíveis aos inimigos. Por algum motivo não sabido, charrua e cavalo passaram a ser quase como uma só criatura.
Por outro lado, foi justamente o crescimento exponencial do gado bovino o responsável pelo fim da mal arranjada paz no território charrua. Como a carne e o couro eram artigos disputados pelo comércio da época, a região que antes era dominada pelos indígenas passa a receber levas de faeneiros (a mando dos espanhóis) e changueadores (aventureiros) que buscavam arrebanhar o gado selvagem para a venda aos ingleses. Essa mistura com a gente europeia e criolla vai enfraquecendo o já frágil domínio que os charrua tinham sobre o território da campanha. Também é nessa época que ficam mais acirradas as relações com a gente branca que começava a adentrar para o interior, cercando terras e fazendo-as suas.
Em 1626 é a vez da chegada dos jesuítas que começam a criar missões para aldear os índios. O objetivo era domesticar e converter. Os guarani foram mais suscetíveis ao discurso e a ação dos jesuítas, mas os charrua não quiseram nem saber. Eram homens e mulheres livres, acostumados aos caminhos da pampa e não houve quem pudesse prendê-los, ainda que com discursos de salvação. Diz a história que chegou a existir uma pequena redução charrua, em torno de 500 almas, mas não durou mais que quatro anos. Os charrua prezavam a liberdade e, acossados pela invasão branca, acabavam por realizar operações de saque nos povoados, em busca do fumo e da erva-mate. Por conta disso a relação com os colonizadores se acirrava cada vez mais. Naqueles dias começavam a surgir as estâncias, e o gado deixava de ser solto nas pradarias, sendo recolhido em grandes currais. Assim, os animais livres escasseavam e os indígenas perdiam sua fonte de sobrevivência, passando a viver em estado de miséria. Sem terra, sem gado e sem comida, só restava o roubo.
Para os espanhóis e criollos que começaram a ocupar as terras da Banda Oriental, aquela "indiarada" começou a ser um problema e tanto. Era preciso exterminá-los. Foi nesse contexto que aconteceu a famosa "batalha de Yi" em 1702, quando os espanhóis decidiram encerrar a aliança que mantinham com os charrua e os minuano, e resolveram matar todo mundo. Para isso, de forma perversa, contaram com a ajuda dos guarani, os quais já mantinham aldeados há anos. E o resultado foi que mais de 200 charrua pereceram sob o exército de dois mil guarani. Outros quinhentos, levados como prisioneiros para as missões, foram assassinados pelos tapes, também orientados pelos jesuítas e chefes espanhóis. Era o que os espanhóis chamavam de "limpeza dos campos". Na metade do século muitos tinham sido passado pela faca e as mulheres e crianças mandadas a Buenos Aires e Montevidéu servindo como domésticas. Ainda assim, vários grupos resistiram e seguiram vagueando pelos campos, vivendo de contrabando de gado e roubo.
Artigas, os charrua e a independência
São esses valentes que o jovem José Artigas vai encontrar nas cercanias das terras onde vivia com os pais, na imensidão da campanha gaúcha. Desde bem guri ele fugia para as tolderias e aprendia com os charrua o valor da vida em liberdade. Aprendeu suas táticas de guerra, sua cultura, sua forma comunitária de viver. Quando então, finalmente, saiu de casa para não mais voltar, foi viver de aventuras como contrabandista de gado. Abdicando de ser um “filho de fazendeiro” era com os irmãos charrua que ele vagueava pelos campos na única rebelião possível naqueles dias: pegar os espanhóis pelo bolso. Em 1897, quando decide entrar para o batalhão de Blandengles, Artigas já tem muito claro os seus objetivos. Inspirado por tantas lutas que assomaram contra o domínio espanhol, Artigas decide que, junto com os negros e índios – os mais explorados entre os explorados – vai comandar a luta pela independência da Banda Oriental.
E é assim que as coisas acontecem. O soldado Artigas não é um soldado qualquer. Ele pensa e propõe. Tem do seu lado uma leva de homens livres que o seguem de livre vontade. Não como um líder, mas como a um irmão. Acreditam nele e nos seus desejos de vida digna, de terra repartida, de vida comunitária. Esse legado, aprendido com os charrua, é o que vai comandar toda a proposta artiguista de libertação. E é na valentia indígena que acontece a primeira grande batalha de Artigas, na comunidade de Las Piedras, em 1810. Armados apenas de facas, os comandados de Artigas colocam para correr os soldados bem armados da coroa. Depois disso, são inúmeras as páginas da guerra, com Artigas e seu grupo de índios e negros, aos quais chamava de “povo de heróis”. Com eles, praticava a política da soberania popular e da autodeterminação, gestando uma consciência de classe, de pertencimento, que se manteve firme até o massacre final. Nos acampamentos comandados por Artigas todas as coisas eram discutidas abertamente, cada soldado, cada mulher, cada ser, tinha direito a voz e voto. Era essa gente que deliberava, Artigas apenas cumpria. No primeiro grande êxodo, quando o povo seguiu com ele pelo lado norte do rio Uruguai, Artigas chegou a criar uma entidade sociológica, a qual dizia obedecer. Era o “povo oriental em armas”. Nunca traiu os seus companheiros e com eles levou a Banda Oriental à liberdade.
Mas, a história da libertação desta parte do sul do mundo tem também os seus traidores, que acabaram sendo os carrascos de Artigas e dos charrua. Logo depois da independência, os interesses da elite criolla foram se consolidando e “aquela gente suja” que andava com Artigas acabou virando uma pedra no sapato. Ninguém queria que as ideias de reforma agrária, democracia e autodeterminação vingassem por ali. A revolução artigista representava uma transformação radical nos métodos e práticas de governo. A prioridade era a ação direta do povo. As comunidades elegiam seus representantes de forma livre e era nas assembleias que se discutiam os temas relevantes da nação. Este sistema foi cunhado como o “sistema dos povos livres”. Pela primeira vez, depois da conquista europeia, o território voltava a ser das gentes. E a proposta defendida por Artigas era tão avançada que ele conseguia manter unidos os povos originários e os descendentes espanhóis sob o mesmo desejo: criar uma pátria nova, livre, soberana, onde cada um tivesse o mesmo poder. Era coisa demais para as elites locais e para os que sonhavam em dominar a região, rica em carne e couro.
Foi aí que começou a se gestar o processo de destruição de Artigas e de seu povo. Através de intrigas e difamações, o comandante é escorraçado do Uruguai, partindo para o exílio no Paraguai. Com ele seguem dezenas de famílias charrua, decididas a compartilhar sua derrota. Mas, outros tantos permanecem no território uruguaio e passam a ser vistos como um perigo em potencial. Eram homens livres e não haveriam de aceitar a perda das terras e de todo o ideário construído com Artigas. O presidente da nação recém-criada, Fructuoso Rivera decide então chamar os charrua para uma armadilha.
Corre o ano de 1831, num cálido abril, quando Fructuoso envia convites a todas as tolderias charrua para um encontro em Salsipuedes. Pede a ajuda dos indígenas para defender as fronteiras contra os portugueses. Os charrua acorrem, solícitos, em defesa da pátria oriental, a qual aprenderam a amar como sua. Eles chegam, armam seus toldos e esperam pelo presidente. Ele nunca chegaria. Durante a noite, enquanto os indígenas dormem, o exército ataca. A ordem é matar todo mundo. Nenhum charrua deve sair vivo. O que se vê na manhã seguinte é um banho de sangue. O povo charrua está exterminado. Os poucos que restam vivos são vendidos como escravos. A nova nação se vê livre do incômodo: o valente povo charrua que, na verdade, foi o protagonista da liberdade.
Entre os “escravos” levados para Montevidéu seguem Vaimaca, Senaqué, Tacuabé e Guyunusa, que dois anos mais tarde são levados como “bichos de circo” para a França. Subsumidos como criados e perdidos de sua liberdade o povo charrua originário do Uruguai vai se apagando, até deles não restar mais vestígios. Alguns poucos homens que sobrevivem ao massacre de Salsipuedes, comandados pelo cacique Sepé atravessam o rio Uruguai pela cidade de Quaraí, e passam para o lado português, indo, mais tarde, se integrar às colunas do exército farrapo que iniciou a luta pela independência na região do Rio Grande do Sul. Misturados aos minuanos e tapes, eles irão escrever páginas gloriosas no chão brasileiro, mas, igualmente derrotados, também desaparecem na poeira da história.
O fim?
Até o final do século XX era dado como certo que o povo charrua era uma gente extinta. Dela restava só a memória daqueles anos longínquos da independência. Mas, pouco a pouco, pessoas foram se deparando com suas raízes, descobrindo seus ancestrais. Descendentes da gente charrua que passou para o Paraguai com Artigas, do grupo que cruzou o rio Uruguai e veio para o Brasil, dos que sobreviveram como escravos ou empregados domésticos. A história charrua voltou a ser contada, palavras da língua original começaram a ser lembradas e a vida brotou. O povo charrua foi assomando nos descendentes e hoje já são milhares os que se autodenominam assim. Há uma organização do povo charrua no Uruguai e outra no Rio Grande do Sul. Não há um território específico sendo reivindicado ainda, mas já se sabe que no início de 1900 havia um pequeno grupo fixado na região de Tacuarembó, no Uruguai, bem como atualmente há um grupo vivendo em comunidade próximo à Porto Alegre.
Para os descendentes o mais importante agora é recuperar a história. O povo do Uruguai precisa saber que só é livre porque um dia o povo charrua se levantou em armas, junto com Artigas, e defendeu as fronteiras ajudando a criar a nação. O povo do sul precisa saber que os charrua foram enganados, massacrados, mas ainda assim deixaram viva a sua marca. Não é sem razão que na entrada de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, a estátua que representa a cidade é uma figura que é um misto de paisano e charrua. O famoso “laçador”, apesar de um semblante bem paisano, aparece com o xiripá, a vincha na testa e a boleadeira, elementos típicos da cultura charrua.
E, hoje, já na metade da primeira década do século vinte e um, os charrua se levantam e se mostram. Tanto que no dia 9 de novembro de 2007, após uma luta que já durava 172 anos, a Câmara Municipal de Porto Alegre reconheceu a comunidade charrua como um povo indígena brasileiro. Considerado extinta pela Fundação Nacional do Índio (Funai), essa foi uma vitória fundamental. O evento foi organizado em conjunto pelas comissões de Direitos Humanos da Câmara Municipal, da Assembleia Legislativa e do Senado Federal.
Há informações de que existem mais de seis mil charrua nos países que compõem o Mercosul. Só no Rio Grande do Sul, são mais de quatrocentos índios presentes nas localidades de Santo Ângelo, São Miguel das Missões e Porto Alegre. A terrível sentença de Fructuoso Rivera não se cumpriu. O povo que dominava todo o território da Banda Oriental não foi exterminado. Ele vive e avança!